50 anos do golpe de 64

O direito à memória e à verdade é um requisito indispensável para que gerações sucessivas possam avançar na construção de uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária. Por isso, no momento em que se registra a passagem dos 50 anos do golpe militar de 1964, o SINDIPETRO-RN dá início a uma série de entrevistas com pessoas que o testemunharam. Não esquecer para que jamais se repita é o nosso propósito declarado.

50 anos do golpe de 64 (I)

Capistrano: O Brasil precisa sedimentar sua democracia

Antônio de Farias Capistrano é historiador, professor aposentado e ex-reitor da UERN.

 

Quantos anos o senhor tinha e o que fazia em 1964?

Tinha por volta de 16 anos. Era estudante, trabalhava na Livraria Universitária, e já fazia uma participação política ativa, principalmente na parte de cultura. Fazíamos teatro, jogral, movimentações políticas. Tínhamos um relacionamento muito grande com o grupo popular de Recife, do qual participavam grandes figuras nacionais, como Paulo Oliveira, Josemar Azevedo, Frank Capistrano, Hélio Vasconcelos, José Wilker. Atuávamos divulgando livros, revistas, jornais. Grupo grande de universitários e secundaristas.

Exercia alguma militância política? Em que frente de atuação?

Comecei minha militância em 1961, aos 13 ou 14 anos. Frank Capistrano me levou ao Partido Comunista para as primeiras reuniões, algumas no apartamento de Luís Maranhão. Dávamos apoio a Djalma Maranhão para implantar as reformas de base no Rio Grande do Norte. A classe operária estava se organizando em todo o Estado. Era muito bonito. Tínhamos basicamente três tendências de organização. Uma da igreja católica, uma do Partido Comunista e outra das Ligas Camponesas de Julião. A gente sentia o movimento da classe trabalhadora se organizando, os sindicatos dos ferroviários, da construção civil, correios.

Mas o Partido Comunista estava na clandestinidade. Seu registro havia sido cassado em 1947. Então, começamos a militar nos chamados partidos hospedeiros, como o PTB, do nosso presidente João Goulart. Tinha também a Frente Nacionalista, da qual participavam grandes políticos brasileiros como Brizola.

Como o senhor recebeu a notícia do golpe?

Eu corri (risos). Fui para Extremoz, passei lá seis meses escondido. Foi mais medo de ser preso do que perigo. Prendeu muita gente. Foi uma surpresa e muita tristeza. Para você ter uma ideia, em 25 de março de 64 a gente fez uma festa do aniversário do partido na Associação Norte-Rio-Grandense de Imprensa. Festa linda, discurso, Prefeito.  Eu nunca acreditei muito nessa possibilidade. A gente achava que não havia clima. A população era muito politizada. O presidente tinha sua aprovação.

Eu estava na cidade de Pureza e escutei o último comício, do dia 13, no Rio, pelo rádio. Ele sentiu que alguma coisa estava errada. A gente não. A gente que estava na militância, na base, na rua, fazia discurso, teatro, distribuía jornal. 

Foi uma surpresa para mim.

Qual era a sua opinião sobre o governo de João Goulart?

Jango foi um presidente excepcional. Era um herdeiro de Getúlio. Na época do golpe tinha 70% de aprovação da população. Ele não era comunista. Era nacionalista, progressista e de esquerda. Estava caminhando para transformar o Brasil. Queria implantar as reformas de base no país, que é o grande nó do nosso processo de desenvolvimento. Havia sete reformas cruciais para o desenvolvimento do país, que não foram realizadas. Hoje, temos esse crescimento urbano violento e desorganizado. Não criamos uma classe média no campo, o que resultou nesse êxodo rural descontrolado.

Jango foi tão positivo que derrubaram ele.  Era um defensor da ideia de independência e de que as Américas se unissem. O Brasil, durante seu governo, foi o primeiro país latino-americano a visitar a União Soviética, pois os Estados Unidos não permitiam.

Quais as consequências atuais do golpe para o povo brasileiro?

Temos sequelas de não termos feito as reformas de base. Temos atrasos pela falta de desenvolvimento pleno. Não conseguimos implantar a reforma educacional, por exemplo. Tivemos várias campanhas para alfabetizar, como as de Paulo Freire, figuras importantes como Darcy Ribeiro, Josué de Castro, um dos maiores nomes desse país, presidente da FAO (Organização das Nações Unidas para a Fome, Agricultura e Alimentação). Um homem que escreveu uma série de livros denunciando a questão da fome. Ele dizia que a culpa da fome era do sistema econômico e não da capacidade de produção do homem. Havia uma distribuição mal feita.

O processo poderia ter sido diferente. Tranquilo, devagar, oferecendo uma infraestrutura que permitisse à população ter condições de vida na área de educação, saúde, cultura. A ideia nossa era essa mesmo, fazer com que o Brasil, que é um país riquíssimo e tem condições de oferecer à população tudo isso, se desenvolvesse. O Brasil é um país gigante, cada estado, município é um feudo, quem manda lá é o prefeito e um grupo familiar. O governo federal tem uma política nacional de saúde, mas quem implementa são os governadores e os prefeitos.

É possível fazer algum paralelo com a situação política atual? Qual ou quais?

São as mesmas figuras, que não conseguem ganhar no voto e partem para o tapetão. As forças progressistas querendo que o Brasil avance e a elite, a Casa Grande e branca, aqueles que sempre dominaram o país, querendo impedir isso. Fizeram isso em 54, em 61, no governo JK foram diversas tentativas de golpe. Após a renúncia de Jânio, em 68, queriam impedir a posse de Jango. Ele teve que ter o 3º Exército ao seu lado para conseguir assumir.

Como o senhor avalia o papel da mídia naquela época e agora?

A grande mídia faz o papel dela, de quem ela representa que é a grande elite brasileira. É por isso que os governos progressistas de toda América Latina estão lutando pela regulamentação da mídia. Em toda a Europa há essa regulamentação. No Brasil, algumas famílias é que mandam. Se você pega o jornal de cada um desses canais é uma mesma linha de pensamento, a mesma coisa. Ainda falam em democracia e em liberdade de imprensa. A gente ainda tem muita dificuldade em ter acesso a uma imprensa livre

O que o senhor acha que motivou o golpe?

O golpe foi resultado muito mais dos nossos acertos que dos nossos erros. Tudo ia bem. Lutas importantes se desenvolviam: em defesa do patrimônio do Brasil, como a Petrobras, a Companhia Siderúrgica Nacional. Vargas não queria entregar o Brasil nas mãos das multinacionais.

Nesse período, Jango era Ministro do Trabalho e reajustou em 100% os salários dos trabalhadores. Foi, então, que o manifesto dos coronéis contra a presença de Jango, em 1º de maio, conseguiu promover a queda de João Goulart do Ministério. O que a gente não contava era com a campanha midiática contra Vargas. São os mesmos de sempre tentando dar golpe. Não ganham no voto e querem ganhar a força no tapetão. Globo, Estadão… Isso me lembra muito o cenário de hoje. Eles ainda elegeram Jânio Quadros, mas não contavam que Jango entraria com mais votos como vice que o presidente.

Que lições o povo brasileiro deve tirar daquele episódio?

Ficar alerta com esse pessoal, essa turma. O Brasil é um país rico, que tem condições de ser independente. E as reformas ainda estão aí, pendentes. Precisamos desatar esse nó.  Essa reforma estava no projeto de Jango, 50 anos atrás. Todas essas questões que enfrentamos: engarrafamentos, enchentes, é consequência disso.

A especulação passou a ser o grande motor do processo desse povo. A corrupção na época dos militares era muito pior, se comparada aos dias de hoje, porque, além de roubar, eles matavam as pessoas. Quantos jovens companheiros meus que morreram, foram assassinados e até hoje não se sabe os motivos? Luiz Maranhão, José Silton, Emanoel Bezerra, são figuras que eram amigas, que sinto muita saudade e foram vítimas da perseguição porque lutavam por um Brasil melhor e mais justo. 

O Brasil precisa sedimentar sua democracia. Para isso precisamos de uma imprensa livre, que não distorça as informações em benefício das elites. Essa foi a grande luta nossa, da minha geração.